A importância do Estudo Constante

A importância do Estudo Constante

Não é muito incomum encontrarmos, ao longo de nossa formação, colegas que se dispõem a fazer o mínimo suficiente apenas para “completar mais uma etapa”. Contudo, concluir que, em um período tão curto (aproximadamente 2 anos), sejamos capazes de adquirir de forma adequada toda a gama de conhecimentos relacionados à Medicina Oriental é um grave engano. Grande parte das formações atuais em nosso país capacita seus alunos, de fato,  por meio de uma base bem fundamentada, a começarem sua prática, apresentando um considerável grau de eficácia. Contudo, o perigo muitas vezes encontra-se exatamente aí: achar que essa base já basta.

Como o próprio termo já diz, trata-se de uma base. E uma base é “apenas” isso: uma base. Muito embora um edifício não seja firme sem uma base sólida, o mesmo nunca estará efetivamente completo se pararmos em sua base.  Dentro da Medicina Oriental, isso não é nada diferente.

É necessário despertar durante, depois e, se possível, até antes do início da formação, a consciência de que este é apenas o início de uma jornada, que não só o/a habilitará a exercer uma atividade, mas também o/a transformará em um ser humano diferente. Com isso, surge o hábito, desejo e “furor” de dedicar-se a revisar o conhecimento previamente ou recém-adquirido e, mais do que isso, não contentar-se com o que já foi assimilado e buscar cada vez mais.

O estudo não deve ser um hábito apenas durante o período de formação, onde supostamente o aluno “tem a obrigação de estudar”. Dentro da prática da MTC (e por que não da vida?), devemos cultivar o desejo de aprimoramento constante, tanto por nós, quanto por aqueles que nos buscam.  ??(y?ngsh?ng), traduzido como “nutrir a vida” é um conceito defendido por muitos médicos da antiguidade (destacadamente Sun Si-Miao), que trata exatamente dessa busca constante pelo autoaprimoramento, tanto físico quanto mental, moral e espiritual.

A acupuntura e as demais modalidades que compõem o corpo da Medicina Chinesa possuem suas raízes em todo um conjunto de crenças, filosofias e códigos de ética, contidos em uma cultura diferente da nossa. Dedicar-se exclusivamente ao estudo das bases da medicina sem buscar entender também toda a cultura que lhe serve de base, é o mesmo que regar uma planta sem raízes: pode-se mantê-la viva até certo ponto, mas em um estado estacionário no qual seu desenvolvimento é inexistente; isso quando não perece. Na prática da medicina, isso não difere. Não devemos nos acomodar com a planta já crescida. Devemos regá-la diariamente para que passe a gerar novos frutos, pois serão esses frutos que trarão  alívio aos que nos buscam.

Andrew Nugent-head, em seu seminário sobre o prefácio do Shang Han Lun (que pode ser assistido em www.traditionalstudies.org) comenta diversas vezes sobre a importância de se ter uma base muito mais profunda do que simplesmente conhecer os aspectos práticos e a aplicabilidade “experimental” e clínica de um determinado ponto ou um determinado fito.

Como compreender de fato uma medicina baseada em uma cultura diferente da nossa, sem estudar essa cultura? E como estudar essa cultura, sem nos dedicarmos ao estudo de seus costumes, crenças e filosofias?

Em uma palestra, o professor Ephraim Medeiros comentou sobre o significado e a aplicação clínica do ponto P-3 ?? (ti?nf?), cujo nome corresponderia a um cofre onde apenas um funcionário de todo o império teria acesso aos seus tesouros. Assim, o ponto poderia ser utilizado em situações onde “não se acha saída” (trazendo a tona os tesouros que poderiam ajudá-lo).

Em seu artigo “Mito e Significado em Medicina Chinesa” (disponível em português no site www.medicinachinesaclassica.org), Lonny Jarrett faz uma relação entre o mito de Da Yu  (??) e as enchentes, e o significado e função do ponto VG20  (??Baihui).

Em “Todas as Doenças vêm do Coração” (também encontrado traduzido no site acima), Heiner Fruehauf discorre sobre os ensinamentos de Wang Fengyi e sua terapêutica (o qual é aprofundado em seminários e palestras encontradas na sessão privativa do site www.classicalchinesemedicine.org), focada fortemente em questões emocionais e espirituais que, muito embora possa ser considerado um “sistema à parte”, não deixa de ser também uma terapêutica da medicina chinesa.

Em sua palestra na WFAS 2011, o acupunturista Bruno Nöthlich discorre sobre a importância de se compreender o pensamento confucionista e daoísta, e sua influência no estudo e na prática da pulsologia.

No IX Simpósio realizado em sua escola (com a temática focada puramente nos textos clássicos), o acupunturista e diretor geral da EBRAMEC, Reginaldo Filho, apresenta diversos protocolos clássicos encontrados em livros de acupuntura, e correlaciona a importância de se compreender o contexto em que foi apresentado em face à sua aplicabilidade.

Indo além da “Medicina Chinesa Pura”, encontramos nomes como George Goodheart, John F. Thie, Gordon Stokes e Daniel Whiteside, que contribuíram fortemente para o desenvolvimento da Cinesiologia Aplicada, técnica que agrega, à sua maneira, diversos preceitos da medicina chinesa em suas formas de tratamento, mostrando que o desenvolvimento de técnicas modernas, muitas vezes até com linguagem ocidental, buscam base no conhecimento tradicional. Citamos, muitas vezes, a medicina chinesa por tratar-se de uma publicação sobre acupuntura e medicina oriental. No entanto, o preceito de aprimorar-se constantemente é o que leva à excelência aqueles que se dedicam em entender as bases de qualquer área.Devemos buscar os conhecimentos tradicionais, e usá-los como uma base para o desenvolvimento de novas técnicas e teorias.

Esses são apenas alguns que coletamos para demonstrar a importância de um aprofundamento constante, tanto na medicina, quanto na cultura de forma geral.

Se compararmos a disponibilidade de material didático e ferramentas disponíveis no Brasil, em relação aos países estrangeiros, percebemos facilmente a limitação em que nos encontramos. Basta uma pesquisa rápida em sites como Blue Poppy (www.bluepoppy.com) e Red Wing Books (http://www. redwingbooks.com/), e encontramos a gama de materiais de excelente qualidade ao qual somos (apenas por enquanto, espero) desprovidos. Textos como Shennong Bencao Jing e Bencao Gangmu (grandes textos da fitoterapia), Pi Wei Lun, Beiji Qian Jin Yao Fang, Shang Han Lun (publicado uma vez pela editora Andrei com o título de “Exploração Clínica na Medicina Chinesa”) e tantos outros permanecem desconhecidos de boa parte dos acupunturistas do Brasil. Autores como Phillipe Sionneau, Nigel Wiseman, Stephen Birch, Kiiko Matsumoto permanecem às escuras. Apenas 14 anos após sua publicação é que fomos agraciados com uma versão do Manual de Acupuntura, de Peter Deadman, em português, lançado recentemente pela Editora Roca.

Contudo, seria injusto apontar de forma tão direta e ampla as debilidades encontradas em nosso país, e ocultar os trabalhos que têm sido feitos para equilibrar isso. Projetos como o Medicina Chinesa Clássica (www.medicinachinesaclassica. org), que conta com a colaboração de diversos acupunturistas do Brasil, trabalhando com a tradução livre e sem fins-lucrativos de artigos em diversos idiomas (inglês, francês, espanhol), tem feito uma grande parte na divulgação dos conhecimentos mais clássicos e tradicionais da acupuntura e a medicina chinesa.

O ENAPEA (Encontro Nacional de Profissionais e Estudantes de Acupuntura – www.enapea.org ) tem, aos poucos, conseguido mobilizar cada vez mais acupunturistas em diversos estados e trazer à tona a importância do debate da regulamentação e a autonomia de nossa profissão, e como isso poderia fornecer uma gama maior de informações e complementos ao conhecimento teórico e prático dos acupunturistas.

O fórum de discussões virtuais da EBRAMEC (http://www. ebramec.com.br), espaço criado para a discussão das diversas áreas da medicina oriental.

A própria revista Medicina Chinesa Brasil, sendo um marco centre os poucos periódicos sobre o assunto disponível no país, vem permitindo a propagação de outras teorias e informações aos estudantes e praticantes.

Obviamente, não podemos ignorar, também, as próprias instituições de ensino que bravamente enfrentam as investidas contra nossa autonomia, enquanto buscam constantemente aprimorar, dentro de suas possibilidades, a qualidade de ensino da Medicina Oriental.

Mas ainda assim, como desenvolver um estudo mais aprofundado na área da medicina chinesa, se a disponibilidade de material é tão limitada?

Corro talvez o risco de soar um tanto romântico, mas, minha experiência na área, me convenceu que um dos principais mecanismos para o desenvolvimento cada vez mais aprofundado é eliminar a tendência de transformar o estudo em algo puramente teórico e mecânico. Precisamos de um saber mais vivo e dinâmico. Não devemos transformar o estudo em um mero “gravar informações” e replicá-la de forma cartesiana em nossa prática clínica. Quando indagado por alunos (ou até mesmo colegas em época de formação), sempre comentei que a melhor forma de absorver e aprofundar os conhecimentos é vivenciá-los, em seu dia-a-dia, para que a sua dinâmica e raciocínio se tornem automáticos e constantes.

Talvez seja uma característica decorrente de minha formação e atuação clínica, que não se atém puramente às práticas da medicina chinesa. Recomendo, do ponto de vista clínico, o estudo de outras terapias – sejam parte da medicina chinesa (como tui na, fitoterapia e qi gong) ou não – que possam complementar sua prática, auxiliando o terapeuta a abarcar os demais aspectos envolvidos do paciente. Cinesiologia Aplicada, Terapia Floral, Auriculoterapia Francesa, Spiral Tape e tantas outras técnicas apresentam um grande potencial terapêutico, se não como terapias isoladas, como coadjuvantes/complementos ao tratamento de base com a acupuntura.

O que pretendo esclarecer com isso é que nenhum conhecimento é inútil. Mais do que aprimorar a prática clínica, devemos nos focar em como esses conhecimentos adquiridos são capazes de agregar e transformar a nós mesmos. Mais do que uma técnica ou corpo teórico, reconhecer que estes conhecimentos serão aplicados no seu dia-a-dia, apresentando-se não como uma categoria teórica, mas uma sabedoria viva.

Deixando fluir no nosso espírito latino, o desenvolvimento do estudo e da prática da medicina chinesa é similar a apaixonar-se. Temos aquela chama ardente que nos impulsiona e nos leva a não medir esforços, ao mesmo tempo em que nos embriagamos deste mesmo sentimento que nos impulsiona. E mesmo quando não encontramos o conforto ou reciprocidade esperados nos braços deste amor, tal vivência nos completará como seres humanos, e nos dará uma perspectiva muito mais ampla de como nos posicionar, auxiliar e participar do mundo. Com a medicina chinesa não é nada diferente. Ao final, sempre encontraremos nosso lugar de acalanto.

Por último, não poderia encerrar este artigo sem frisar o “recente” movimento em prol da criação dos cursos de Graduação em Acupuntura e a regulamentação de nossa profissão, que, quando concluídos (e que batalhamos para que ocorra o mais breve possível), serão um grande marco em nossa história e uma grande forma de acesso a todo este conhecimento disponível “além-mar”. Mas, até lá, continuem apaixonando-se por este conhecimento e sempre busquem mais. Ao final, perceberão que, como dizia Confúcio: “Trabalhe com o que ama, e não trabalhará um dia sequer.”

Artigo escrito por Paulo Henrique Pereira Gonçalves (PH)

Publicado na Revista Medicina Chinesa ed. 7