Curiosidades da China – Shennong – O Deus da Agricultura que provou cem ervas

Curiosidades da China – Shennong – O Deus da Agricultura que provou cem ervas

Na Antiguidade remota a vida era extremamente dura. Para sobreviverem, os homens eram constantemente obrigados a caçar animais, pássaros e frutos silvestres, desafiando ingremes montanhas, transpondo largos rios, suportando os frios rigorosos do inverno e os calores ardentes do verão, e correndo incalculáveis riscos.

 

    No entanto, nesses tempos não existiam doenças, razão pela qual ninguém adoecia.

    Qual então a razão por que a humanidade começou a sofrer de tantas e diversas pestes e todas as demais enfermidades que se têm vindo a arrastar até o dia de hoje? A resposta a esta pergunta advém da história que se segue:

 

    Numa remota região do mundo, estende-se a cordilheira Kunlun no seio da qual, outrora, se encontrava o reino de Xi. Este era controlado por uma deusa, a Rainha-Mãe do Oeste, que habitava nos cumes da montanha de Jade, majestosamente situada no centro dos seus territórios. Por uma das vertentes da montanha, descia um riacho de águas transparentes que dava origem ao famoso lago de Jade.

 

    Aí, o clima era sempre suave e agradável durante as quatro estações, e a paisagem mantinha-se verde e atraente durante todo o curso do ano. Pelas encostas da montanha e pelas margens do lago cresciam múltiplas variedades de flores e uma imensidão de ervas fragantes, e aí viviam animais e aves de todas as espécies. Contava-se que uma panaceia se produzia neste lugar, tratava-se dos famosos pêssegos da imortalidade, cujas árvores eram fertilizadas por fragmentos de jade, vindos das montanhas com as enxurradas e regadas com as àguas do lago de Jade. Somente uma vez, de três em três mil anos, as pessegueiras floresciam e davam frutos para ter assegurada a vida eterna. Segundo a tradição o deus Houyi foi pedir a panaceia à Rainha-Mãe do Oeste. Esta tinha a seu serviço três imponentes aves de cabeça vermelha, olhos pretos e penas verdes que se chamavam, respectivamente, Dali, Shaoli e Qingniao. Dali estav encarregado de cotidianamente trazer suculentos frutos para a Rainha-Mãe do Oeste; Shaoli encarregava-se do abastecimento de água, e Qingniao tinha o cargo de mensageiro. A Rainha-Mãe do Oeste tinha também a seu serviço, uma outra ave de três pernas, olhos perspicazes e garras agudas, a qual sobrevoava dia e noite a sua residência guardando o lugar e patrulhando o horizonte.

 

    O Imperador Celestial tinha posto a cargo da Rainha-Mãe do Oeste a proteção dos preciosíssimos pêssegos-da-imortalidade, e tinha-a encarregado de manter hermeticamente cerrados os portões das três grutas da cordilheira Kunlun, onde estava encerrada uma multidão de bichos venenosos e animais pestíferos que, se postos em liberdade, poderiam alastrar-se por toda parte infestando a humanidade com as mais horríveis doenças. Os portões destas grutas estavam fechados com colossais batentes de pedra e, devido a terem sempre se mantidos cerrados, as suas frinchas e gonzos tinham-se coberto de musgo verde e ferrugem pedrosa de uma grande espessura, gradualmente acumulados através de milhares e milhares de anos.

    Porém, um acidente imprevisto aconteceu! …

 

    Um dia, quando a ave de três pernas voava pelos céus, aconteceu ouvir os gemidos miseráveis dos bichos venenosos e dos animais pestíferos. Cheia de curiosidade, tentou o interior através das fendas dos portões e, ao ouvirem ruídos os prisioneiros suplicaram-lhe insistentemente para ela os libertar.

    Ao que a guardiã lhes respondeu:

     – Por ordem do Imperador Celestial, vocês deverão permanecer fechados dentro das grutas e, de resto, a chave está nas mãos da Rainha-Mãe do Oeste. Além disso, vocês são declarados nocivosa propagação da raça humana, e eu tenho ordens estritas de não vos abrir os portões.

    – Por favor, abra só uma pequena fresta para os sentirmos um pouco de ar fesco, porque aqui estamos muito abafados. Ninguém duvida da sua grande bondade.

    – Não, não vos psso abrir os portões, porque sei que vocês se aproveitariam da mínima das ocasiões ára fugirem donde estão – disse-lhes a ave de três pernas.

    – Fique descansada que isso não há de acontecer – retorquiram os bichos e os animais, numa voz melancólica e dolorosa – Garantimos não a comprometer de modo algum, se nos fizer um tão grande favor como o de nos deixar respirar uma lufada de ar fresco.

 

    Crédula e condoída, a ave de três pernas acreditou no que lhe diziam, e voou ao palácio da Rainha-Mãe do Oeste para ir buscar a chave.

    A deusa estava dormindo, e bastou a ave abrir cuidadosa e silenciosamente uma grande caixa de pedra, para lá tirar uma chave pesando uma boas dezenas de quilos. De volta a gruta, mal entreabriu o portão os bichos venenosos e animais pestíferos se precipitaram par sair. A ave quis, então, fechá-lo novamente, mas já era tarde demais… por mais que se esforçasse, todos os bichos e animais debandaram rapidamente e dispersaram-se num abrir e fechar de olhos.

 

    Ao ser informada do ocorrido, a Rainha-Mãe do Oeste ficou tão espantada, quão furiosa, pelo que a ave de três pernas tinha feito. A deusa mandou imediatamente Qiongqi, Tenggen e outros ágeis dos seus ministros que tinham grande capacidade em voar, para prender novamente todos os bichos e animais, mas, os seus esforços foram baldados, porque estes já se tinham escondido não se sabendo onde.

 

    Desde então, pestes e enfermidades começaram a contaminar a raça humana, e a proliferar por toda parte. Felizmente, a ave de três pernas abriu apenas um só portão, caso contrário, seria difícil imaginar a quantidade de doenças, ainda mais horríveis, que poderiam ter vindo afligir os mortais!

    Realmente, uma das maiores desgraças que a humanidade sofreu foi ter sido posta a mercê de tais pestes e enfermidades.

 

    Ora, nesses tempos, havia um homem cognominado de Deus da Agricultura. Ele não era apenas inteligente e laborioso, como também se dedicava em servir, de todo os seu coração, os outros. Contava-se que tinha sido ele o grande inventor da agricultura. Na Antiguidade, remota os homens viviam principalmente de caça, mas, com o passar do tempo, a população procriou-se enquanto que o número dos animais selvagens diminuiu proporcionalmente, de tal modo que, para sobreviverem, os homens não tiveram outra alternativa, senão alimentar-se de ervas-selvagens pouco comestíveis. Foi então que, de modo a assegurar a todos da sua povoação um mínimo de alimentos, o nosso homem começou a arrotear as terras em volta donde vivia e a cultivar cereais a título experimental. Graças aos sucessos desta sua experiência, todos os demais lhe seguiram o exemplo, cultivando também cereais. Daí em diante, a vida da população ficou garantida em alimentos durante todas as estações. Por isso, o povo deu-lhe o nome de Deus da Agricultura.

 

    Ao ver que pestes e enfermidades constantemente afligiam os povos, o nosso Deus da Agricultura andava muito cabisbaixo. ” Haverá maneira de resolver este problema? Que poderei eu fazer para livrar a humanidade de tantos males? Tomara eu poder descobrir plantas medicinais capazes de curar todas as doenças!”.

 

    Todavia, existindo no mundo uma tão grande variedade de plantas, como podia ele definir as características terapêuticas de cada uma, e saber quais ervas específicas ao tratamento de cada doença? Inspirado pel oseu ideal de salvar a humanidade, decidiu-se então a provar todas as espécies de plantas, e , assim, cotidianamente, o Deus da Agricultura passou a calcorrear as montanhas, examinando criteriosamente a sua flora e provando, separada e minuciosamente, o sabor de todas plantas e ervas.

 

    Não tardou a reconhecer que cada planta se distinguia pelo seu sabor característico, sendo umas doces, outras amargas, outras ainda picantes ou salgadas, ou mesmo acres, umas aquecendo o corpo, outras os esfriando; umas atuando como desinfetantes, outras como venenos. Diz-se que, certo dia, no decurso das suas pesquisas, o Deus da Agricultura foi envenenado umas setenta vezes, tendo sobrevivido ileso graças a só ter provado uma quantidade ínfima de cada planta venenosa, caso contrário, nunca haveria de ter conseguido voltar ao seu estado normal. Donde se pode bem imaginar o impressionante espírito de abnegação do Deus da Agricultura!

 

    Tendo sido informado dos esforços louváveis do nosso homem, o Imperador Celestial ficou de tal modo impressionado, que lhe enviou um mensageiro com um chicote mágico, denominado Chicote Ocre devido à sua cor terrosa. Daqui em diante, bastava ao Deus da Agricultura atingir uma planta com o Chicote Ocre, para que este imediatamente lhe transmitisse as quantidades medicinais. Assim, por exemplo, se após tocar numa planta com o chicote ficasse vermelho, este indicaria que tal planta tinha propriedades caloríficas; se ficasse branco, significava que tal planta tinha capacidade de abaixar a temperatura; se este mantivesse a cor inicial, ocre, demonstraria a ineficácia de tal planta para o tratamento de qualquer doença e se este se tornasse negro, comprovaria que tal planta possuía características extremamentes venenosas. Tratava-se, realmente, de um fácil e seguro instrumento!

 

    Tendo sido, tanto a invenção do cultivo dos cereais como descoberta de propriedades medicinais das plantas, acontecimentos de estrema importância que se viriam a relacionar com o futuro bem-estar e sobrevivência da raça humana até o dia de hoje, os homens continuam a citar respeitosamente o nome do deus da Agricultura.

 

 

Fonte: Coleção Novos Caminhos. Mitologia Chinesa (Mitologia Primitiva). Quatro mil anos de história através de lendas e dos mitos chineses. Selação e Apresentação por Antonio Daniel Abreu