Mapeamento científico revela como as MTCIs são eficazes no tratamento de doenças físicas e mentais
Estudo inovador diz que os recursos das Medicinas Tradicionais, Complementares e Integrativas contribuem para a melhoria do bem-estar e da qualidade de vida, orientando políticas públicas de saúde no Brasil e no mundo.
Matéria extraída do Consórcio Acadêmico Brasileiro da Saúde Integrativa
Redação: Katia Machado
Revisão: Caio Portella, Ricardo Ghelman e Verônica Abdala
Os números são impressionantes e as evidências, muito significativas: mais de 800 revisões sistemáticas de estudos clínicos controlados revelam os efeitos positivos de um conjunto de nove Práticas Integrativas e Complementares de Saúde (PICS) – denominadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) de Medicinas Tradicionais, Complementares e Integrativas (MTCI) –, entre elas a acupuntura, a auriculoterapia, as plantas medicinais, a yoga, a meditação, a shantala, a prática corporal chinesa, a ozonioterapia e a reflexologia. Dentre os achados científicos, destacam-se os efeitos positivos das PICS para problemas físicos e metabólicos, como as dores crônicas, diabetes, hipertensão e a obesidade, para bem-estar e qualidade de vida das pessoas e para os principais problemas de saúde mental, a exemplo da depressão e da ansiedade.
A esquematização e a caracterização deste amplo universo de estudos científicos sobre a aplicação clínica das PICS para problemas de saúde que acometem a população mundial faz parte do projeto Mapa de Evidências Clínicas em MTCI, iniciado em 2019, a partir da parceria entre o Consórcio Acadêmico Brasileiro de Saúde Integrativa (CABSIN) e o Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde da Organização Pan-Americana da Saúde (Bireme/OPAS/OMS), com apoio da Coordenação Nacional das Práticas Integrativas e Complementares de Saúde do Ministério da Saúde brasileiro. Os Mapas de Evidências trazem uma visão geral e uma síntese gráfica de intervenções integrativas e complementares de saúde. Com a participação de cerca de 40 pesquisadores brasileiros, este trabalho traz subsídios às políticas públicas de saúde no Brasil e no mundo.
O projeto sintetiza as evidências disponíveis sobre um tema específico e identifica lacunas de conhecimento. “Este material é elaborado por meio de um processo que envolve uma busca sistemática nas principais bases de dados, seleção dos estudos de acordo com os critérios de inclusão e subsequente caracterização e avaliação de qualidade dos mesmos”, explica o diretor do CABSIN, Caio Portella. Ele conta que os Mapas de Evidências Clínicas em MTCI têm uma característica peculiar, que é o uso de representações gráficas. “O método permite a integração das revisões sistemáticas em saúde integrativa e terapias complementares, como também a representação do nível de confiança para os diferentes desfechos de saúde, facilitando a interpretação dos resultados”, sublinha Portella.
A iniciativa encontra justificativa no principal documento da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre MTCI, intitulado WHO traditional medicine strategy: 2014-2023. “Este documento norteia e incentiva que os Estados-membros implementem as práticas tradicionais e complementares baseadas em evidências”, conta Ricardo Ghelman, presidente do CABSIN. Segundo a OMS, a falta de dados de pesquisa no campo é o principal desafio enfrentado para avançar nos processos de regulamentação para integrar as PICS aos sistemas e serviços de saúde. “Esta percepção é frequentemente baseada na falta de conhecimento das evidências existentes, que começam com barreiras de acesso, seja na esfera como linguagem de publicação e acesso pago, e vão até dificuldades de busca, como a falta de termos de indexação adequados nas bases de dados, ou mesmo dificuldades na interpretação dos resultados”, acrescenta Portella.
Gestão da atenção à saúde
Já foram publicados 12 mapas, cujos dados analisados vêm contribuindo especialmente com a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares do Sistema Único de Saúde (SUS), lançada em 2016 e que, atualmente, conta com um rol de 29 recursos complementares ofertados gratuitamente aos usuários do SUS. Toda esta compilação contribui no tratamento de problemas prioritários de saúde, a exemplo dos transtornos mentais, das doenças crônicas, metabólicas e na melhoria do bem-estar e da qualidade de vida, colaborando ainda com a tomada de decisões de gestores quanto à inclusão destas práticas na saúde pública.
Três deles realçam práticas milenares da Medicina Tradicional Chinesa (MTC). O mapa de evidências clínicas da acupuntura apresenta os efeitos positivos deste recurso sobre a saúde física e mental. Este mapeamento resulta da análise de 170 revisões, das quais 47 falam sobre os efeitos positivos sobre a dor, 21 revisões focalizam os problemas de saúde fisiológicos e metabólicos, 18 revisões identificam os efeitos da prática sobre as doenças crônicas e 16, sobre os transtornos mentais. Exemplo desse trabalho, um estudo publicado em 2019, no Brasil, conclui que a acupuntura auricular é uma prática promissora para o tratamento da dor crônica na região na coluna em adultos1.
O Mapa Efetividade Clínica da Auriculoterapia, prática integrativa da MTC, com maior incidência no SUS nos últimos anos, saltando de 40.818 para 423.774, entre 2017 e 2019, segundo o Ministério da Saúde, reúne 38 revisões sistemáticas. Com a colaboração de um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), os estudos foram categorizados em quatro grupos de intervenções: acupressão, auriculopuntura, eletroacupuntura e fotobioestimulação. Um dos estudos analisados, publicado nos Estados Unidos no ano de 2017, diz respeito à eficácia deste recurso sobre a dor na coluna, recomendando fornecer a auriculoterapia a pacientes com este problema crônico2. Este recurso integrativo promove a regulação psíquico-orgânica da pessoa, por meio de estímulos em pontos energéticos e zonas neuroreativas localizadas na orelha.
O mapa Efetividade Clínica das Práticas Mente e Corpo da Medicina Tradicional Chinesa apresenta uma visão geral das evidências sobre os efeitos positivos dos recursos usados pela MTC para diversas condições clínicas e de saúde das pessoas, como o Tai Chi e o Qi Gong. Foram reunidas 180 revisões sistemáticas, produzidas entre os anos de 1989 e 2019. O trabalho, que contou com o suporte do Grupo de Pesquisa em Promoção da Saúde e Práticas Integrativas e Complementares (GPPIC/Unifesp), destaca as contribuições das práticas da Medicina Tradicional Chinesa na redução das dores, no tratamento dos transtornos mentais e de doenças crônicas, a exemplo da hipertensão e da diabetes. Uma das pesquisas analisadas confere que a prática do Tai Chi ajudou na redução da glicemia em jejum e auxiliou efetivamente o manejo da glicose no sangue e da hemoglobina glicosilada (HbA1c) em pacientes com o tipo 2 da diabetes3.
As práticas de meditação ganham também visibilidade neste projeto. O mapa de evidência sobre a efetividade clínica da meditação apresenta uma visão geral dos efeitos da prática para diversas condições clínicas e de saúde da população em geral. Foram analisados 191 estudos, dos quais 147 revisões avaliaram resultados a partir de técnicas de mindfulness (atenção plena), 34 revisões avaliaram a meditação geral, oito revisões abordaram a meditação transcendental, três revisões, técnicas de compaixão e uma revisão avaliou as práticas de atenção focada. O mapeamento mostra que técnicas de meditação, como a de atenção plena, permitem perceber pensamentos, sensações corporais e emoções no momento que ocorrem, influenciando positivamente na maneira de se lidar com os desafios cotidianos, melhorando o estresse e auxiliando, inclusive, no tratamento de doenças físicas. Um dos estudos analisados, publicado na Inglaterra no ano de 2017, conclui que “a prática de mindfulness tem efeito mais proeminente nos aspectos psíquicos dos portadores de dor crônica, melhorando a depressão associada e a qualidade de vida”4.
A efetividade clínica da prática do yoga dá nome a outro mapeamento das evidências clínicas em MTCI. Mais que uma prática capaz de trazer experiências positivas, como relaxamento e concentração, que integra corpo, mente e espírito, a yoga promove diversos benefícios à saúde, aplicados a todos os tipos de pessoas, que vão desde tratamento de doenças, alívio de dores até um melhor preparo ao parto, revela a ciência. O mapa, que reúne 150 revisões sistemáticas, resgata, por exemplo, uma pesquisa publicada em 2018, no Depression and Anxiety, periódico científico da Associação de Ansiedade e Depressão da América, que apresenta evidências de efeitos de curto prazo da yoga na ansiedade em comparação com nenhum tratamento, bem como sobre a depressão, concluindo que “a yoga pode ser uma intervenção eficaz e segura para indivíduos com níveis elevados de ansiedade”5.
O mapa Efetividade Clínica da Shantala, prática terapêutica usada em bebês e crianças provenientes da tradição hindú ayurvédica, demonstrou através da análise sobre 38 revisões sistemáticas os efeitos positivos para promoção da saúde, equilíbrio do sistema imunológico e atividade terapêutica sobre os sistemas respiratório, digestivo, circulatório e linfático. A maioria das evidências concentra-se em massagem aplicada em recém-nascidos internados por profissionais de saúde, revelando os benefícios da prática na redução da dor, melhora do crescimento, desenvolvimento neuropsicomotor, tempo de internação hospitalar, imunidade, estresse e qualidade do sono.
Efetividade Clínica das Plantas Medicinais e Fitoterapia para Saúde Mental e Qualidade de Vida dá título ao mapa de evidências sobre os efeitos do uso de antigos recursos para tratar certas doenças. Por meio deste mapeamento, foram analisados 37 estudos de revisão sistemática. O mapa Efetividade Clínica das Plantas Medicinais e Fitoterapia para Doenças Crônicas e Dor, por sua vez, reúne 49 estudos de revisão sistemática. Já os distúrbios metabólicos e fisiológicos sob a ótica das plantas medicinais fazem parte do terceiro mapa sobre plantas medicinais, que reuniu 48 estudos de revisão sistemática, revelando os diferentes efeitos positivos desta prática para problemas de saúde, como hipertensão e obesidade. Um exemplo, nesse sentido, é o estudo publicado em 2015 sobre o efeito positivo do alho na pressão arterial6. Esta revisão revela que algumas substâncias naturais presentes no alho têm propriedades anti-hipertensiva. Os três mapeamentos contaram com a participação de um grupo de pesquisadores do Laboratório de Pesquisa e Desenvolvimento de Práticas Integrativas e Complementares (LabPICs) da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A aplicação clínica da ozonioterapia bucal dá título ao mapeamento que apresenta 15 estudos de revisão sistemática. A maioria dos estudos concentra-se na intervenção com água ozonizada tópica e mistura gasosa oxigênio-ozônio aplicada no tratamento de cárie, dor, cicatrização e inflamação. O trabalho contou com a participação de pesquisadores do Centro de Excelência Prótese Implante da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (FOUSP). Já o mapeamento sobre os efeitos da ozonioterapia médica para diversas condições clínicas e de saúde das pessoas, como infecções agudas e cicatrização de feridas, inclui 14 revisões sistemáticas, a partir de uma ampla busca bibliográfica entre os anos 2000 e 2019. O trabalho contou com a participação da Sociedade Brasileira de Ozonioterapia Médica (SOBOM) e o apoio da World Federation of Ozone Therapy (WFOT). Um estudo clínico de 2014, publicado na Oxidative medicine and cellular longevity, mostrou o benefício da ozonioterapia na redução significativa do tamanho de feridas associadas a diabetes através da indução à cicatrização7.
O mapeamento da reflexologia apresenta uma visão geral das evidências desta prática para diversas condições clínicas e de saúde das pessoas. Ele reúne 18 revisões sistemáticas sobre o tema, a partir de uma ampla busca bibliográfica de estudos entre os anos 2000 e 2019, que contou com a participação do Grupo de Pesquisa em Promoção da Saúde e Práticas Integrativas e Complementares da Universidade Federal de São Paulo (GPPIC/Unifesp). Trata-se do desenho dos efeitos positivos de uma prática que envolve a massagem em áreas reflexas encontradas nos pés e mãos. O mapa realça evidências sobre os efeitos da reflexologia sobre vários problemas de saúde, incluindo os benefícios da prática no alívio das dores do câncer. Estudo publicado no Cancer Nursing, em 2008, compondo o mapeamento das evidências clínicas desta prática da medicina complementar, mostra que uma média de 31% dos pacientes do Reino Unido com câncer usam algum tipo de terapia complementar, entre elas a reflexologia8.
As contribuições das MTCI, no contexto da pandemia de Covid-19, também fazem parte deste esforço de mapeamento, que teve a primeira etapa concluída recentemente. A metodologia deste mapa, formado por 126 estudos, teve como objetivo mapear recursos que pudessem embasar novas pesquisas e ferramentas úteis para o momento da pandemia. A equipe que compilou o trabalho envolveu pesquisadores de 12 países da América Latina. As evidências foram organizadas em três categorias: imunidade/efeito antiviral contra vírus respiratórios; tratamento complementar de sintomas de infecções respiratórias; e saúde mental. As intervenções analisadas abarcam, especialmente, as plantas medicinais e a fitoterapia, a medicina tradicional chinesa, as terapias mente-corpo, como meditação e yoga, os probióticos e suplementos nutricionais, além de medicamentos dinamizados, homeopáticos e antroposóficos. “Os 12 mapas respondem afirmativamente aos questionamentos quanto ao grau de evidência das práticas integrativas e complementares, que há demanda tanto no setor privado quanto no público, seja na atenção primária ou nos hospitais”, conclui Ghelman, realçando que os estudos sobre as MTCI aumentaram substancialmente nos últimos 20 anos.
Referências bibliográficas
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